Junto ao rio, a este rio sempre dolente, vagaroso, a que alguém chamou de "Mondego", estou eu, só, a contemplá-lo, à procura de Palavras de encontro. Se em ti há sempre mais do que tu, talvez as palavras de encontro consolidem esses acrescidos pedaços de nós que os acasos da vida e do acontecer nos atiram dos lados que menos esperamos.
Vejo-te todos os dias da minha janela, por entre as ramagens das árvores, a beleza da tua paisagem, colorida pelo azul celestial que ornamentam as tuas águas...olhos de um céu imenso de vida, de esperança e de futuro. Há palavras que arranham a voz de tantas tramas que o destino tece...Há palavras....e também há esse "Zé Ninguém", resíduo de tudo o que me fugiu: crenças, orações, medo das missas perdidas e das sextas-feiras comungadas no interesse da salvação...Resíduo da minha fé, tábua e ponto parado do terreno que me fugiu debaixo dos pés...Sem ideal humanista, sem sonho de elite, sem natureza humana, sem paradigma perdido nem achado...Ser do espaço, da matéria, da fala, ser que suga a hipercomplexidade da organização...Resíduo, razão do que digo para todos e para ninguém, ser sem roupas nem trapos, infantil, lactente, adulto, velho, com ou sem gosto de ser feliz ou miserável do desespero, ventre de fome e de vergonha, ânsia de uma fartura distante, cálice de um pensamento torturado...Vítima inconsciente de sinistras máquinas...
Máquinas de tudo e de nada...máquinas que nos dão um número, o colam no nosso cu, no peito, nos olhos ou nos ouvidos; máquinas que pertencemos a números estatísticos...mas, asnos seremos se os deixamos colar na boca do nosso pensamento, se deixarmos que um certo machado corte a sua raíz...
Felinas máquinas gritam a diarreia cibernética das palavras vazias, ostentam o gosto perverso dos espantalhos da criação, perenizam o velho costume de trilhar os banais caminhos de uma falsa arte, de um estreito possível, de uma sórdida hipocrisia. Bem gostaría que voássemos acima das amorfas esperanças do sempre igual, da morte anónima de milhões de parceiros, de milhares de vida explodidas em escassos segundos por essas imperdoáveis máquinas do controlo e da guerra.
Máquinas bestiais que, subtilmente, mascaram a sinistra identidade dos seus senhores. Ah! Sois vós, senhores sem rosto, proprietários da porra, que nos ofereceis os deuses, os padres-nossos, as ideologias, os espaços e os tempos feitos da po0breza da vossa abundância....
Porra para os vossos tranquilizantes, detergentes, drogas, símbolos do quente e do frio, écrans do que não quero ver...Porra para quem compra o meu tempo por doses banais e me impige o que não quero ouvir, o que não quero olhar, o que simplesmente não quero! As tuas paisagens são sempre iguais. As tuas casas, análogas umas às outras, a tua beleza está gasta, desbotada, fora de prazo!
Ignóbeis mascarados que tanto empenho pondes na mágica ocultação do primeiro motor das vossas máquinas infernais, na viscosa alienação das nossas vidas. Além de nos afogarem nos bens do hiperconsumo, o vosso tétrico desejo é o de nos reduzir à simples dimensão de uma peça esplendorosamente lubrificada com o sangue dos vossos interesses. Porra também para os autómatos do sempre igual que, sagradamente, executam os vossos planos, mesmo que transbordantes de um macabro desejo de morte.
Quero ardentemente a vida, o amor, a felicidade! Lutarei, nem que apenas seja para simplesmente ser uma palavra de revolta que grite a lucidez quase perdida deste tempo de não ser. Quero espaços de pensar, quero fechar os olhos aos vossos cartazes, os ouvidos aos vossos comandos e, enfim, o pensamento aos vossos convites!
Infelizmente , percebo que a palavra de revolta, embora arranhe a voz, não evita a asfixia....MERDA! Sou lúcido, mas, como Álvaro de Campos, tenho que ir no barco como tantos outros.
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